Suelem Demuner Teixeira


No início do século XX, a cidade Rio de Janeiro, considerada na época uma cidade insalubre, passou por uma remodelação a fim de renovar sua imagem como capital de um país, que correspondendo aos anseios de uma elite republicana, deveria ser exibido como uma nação modernizada. Tal remodelação estava incluída nos planos de uma Grande Reforma Urbana (1903-1906), composta por duas reformas, uma de responsabilidade do governo federal e outra da administração municipal. O governo federal, presidido por Rodrigues Alves, se encarregara das obras do Porto do Rio de Janeiro e àquelas relacionadas à circulação de mercadorias, como a Avenida Central, a avenida do cais (atual Rodrigues Alves) e o canal do Mangue. À administração municipal, cujo maior representante fora o então prefeito Pereira Passos, coube a abertura e o alargamento de outras ruas e medidas direcionadas ao saneamento e embelezamento da cidade. Tais intervenções podem ser vistas como um investimento simbólico a fim de melhorar a imagem do país no exterior (atraindo imigrantes e investimentos) e legitimar o regime republicano em âmbito nacional, alcançando o imaginário de uma população que ainda estava afetivamente apegada à Monarquia e à figura central do Imperador D. Pedro II.

Figura 1 – Pereira Passos (acervo Arquivo Nacional – Fundo Correio da Manhã)

A cidade é, antes de seu aspecto natural ou físico, um espaço social. As intervenções em seu espaço funcionam também como representações que lhe conferem novos sentidos. Tais mudanças atuariam sobre o imaginário social, visando produzir uma sensação de inserção em novos tempos. A manipulação do imaginário social é uma estratégia importante para a legitimação de um regime político, pois possui um grande peso em momentos de mudança política ou social, atingindo a cabeça e o coração da população (CARVALHO, 1990, p. 10). A modernização seria orientada por novos usos da capital, apagando da memória as representações que tivessem afinidades com o período imperial. Esses projetos trariam uma nova significação para a cidade, fazendo surgir novas imagens em detrimento de imagens antigas, que deveriam ser extirpadas. A produção desse novo imaginário atingiria primeiramente a população carioca, para em seguida “conquistar” a população brasileira. Dessa forma, o regime republicano iria se perpetuando na sociedade através desse novo espaço urbano, modernizado.

Para que a nova imagem da capital fosse legitimada e alcançasse uma repercussão de âmbito nacional e internacional, foram de extrema importância os discursos materializados nos jornais, nas revistas, nas fotografias. O autor do discurso é também o detentor de um poder simbólico capaz de convencer o receptor a apoiar as suas causas. O jornalista pode ser inserido nessa abordagem à medida em que se torna um
especialista da produção simbólica, legitimando por meio dessa produção, a sua dominação, representando seus interesses ou daqueles a quem está a serviço1. A imprensa tem um papel difusor das práticas e das ideias, e na época da Grande Reforma Urbana, o fato dos jornais e revistas serem o único meio de comunicação em massa fortalecia sua autoridade e ampliava o seu poder de persuasão.

Como instrumento ativo da construção da cultura de uma época, a imprensa pode nos dizer muito sobre o contexto histórico envolvendo uma sociedade no seu tempo. Agente do processo de renovação do espaço urbano desde os tempos do Império, a imprensa associou às inovações técnicas implementadas no final do século XIX, um caráter empresarial voltado para interesses capitalistas de ampliação de vendas, consagrando-se como grande empresa no início do século XX, época em que se discutia a renovação da capital. Parte considerável da imprensa protagonizou uma intensa campanha a favor dessa renovação. Envolvidos no processo de consolidação do regime republicano, os jornais e revistas procuraram construir uma representação ideal da sociedade. Para terem credibilidade, precisavam também atrair leitores e convencer o público a apoiar suas ideias. Sendo assim, enfatizavam as “maravilhas da modernização” em detrimento das “mazelas dos tempos idos” na capital.

Os avanços na comunicação, ocorridos durante a segunda metade do século XIX, dinamizaram setores como a imprensa, as correspondências e o comércio mundial, especialmente por conta da tecnologia do telégrafo. A troca de mensagens entre lugares distantes, que normalmente levava semanas ou meses, passou a ser realizada em horas. Apesar das burocracias e da lentidão em expandir o seu sistema telegráfico, o Brasil aos poucos foi ampliando a comunicação entre suas províncias2.Na época da Grande Reforma Urbana, praticamente todo o território brasileiro já havia sido contemplado pelos telégrafos, o que facilitou a repercussão desse evento no território nacional. O desenvolvimento dos correios e dos meios de transporte também estreitou as comunicações entre as regiões e expandiu o acesso às informações. A malha ferroviária foi atingindo lugares longínquos, possibilitando que os periódicos chegassem aos leitores e reduzindo o tempo de comunicação entre as regiões brasileiras (BARBOSA,2010. p. 117). Jornais da capital partiam rumo a outras cidades através das agências dos Correios, que por sua vez, utilizavam os trens e bondes para distribuí-los pelas regiões mais distantes.

Figura 2 – Carta do Império do Brasil com a designação das ferrovias, colônias, engenhos centrais, linhas telegráficas e navegação a vapor, 1883. (Acervo Arquivo Nacional – Fundo Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos)
Figura 3 – Mapa Telegráfico do Brasil em 1900 (Acervo Arquivo Nacional – Fundo Francisco Bhering)

O próprio desenvolvimento da imprensa também fazia parte do contexto de modernização. Para o jornal O Vulgarizador, dedicado à divulgação da ciência, a imprensa era considerada um artefato de modernidade, junto com o vapor e a eletricidade. “O jornal era ‘moderno’ não apenas por divulgar novas ideias, ou seja, por ser um veículo de civilização, mas também por ser produto das inovações tecnológicas de sua época” (VERGARA, 2011. p. 25). As inovações técnicas, como a modernização dos maquinários e o uso de ilustrações, transformaram os métodos de impressão. Houve um crescimento das tiragens e mais rapidez na distribuição, encurtando o tempo e a distância nas comunicações. Somaram-se a esses fatores, o surgimento de uma nova categoria de jornalistas profissionais e novas seções de entretenimento.

As revistas ilustradas desempenhavam um papel estratégico e de grande impacto social, representando a celebração da nova cidade. A utilização da fotografia em suas páginas foi importante para a divulgação da modernização da capital, promovendo a identificação do leitor com seus novos aspectos. Suas imagens associavam as transformações a um certo “heroísmo” da burguesia republicana (OLIVEIRA, 2010. p.133). Além disso, tais imagens eram vistas como uma forma agradável e de fácil leitura sobre as reformas, proporcionando uma percepção imediata das intervenções urbanas.

Figura 4 – Entrada da Barra, bairro de Botafogo – Vista tomada do Pico do Corcovado (Revista Kosmos, dezembro de 1906)

Jornais e revistas anunciavam as mudanças, e as notícias iam atingindo um alcance cada vez maior, ultrapassando as fronteiras do Rio de Janeiro. A Grande Reforma Urbana passava a ter cada vez mais destaque nas páginas de jornais de vários estados do Brasil. O Rio de Janeiro aparecia nos jornais de várias formas: através de telegramas, por correspondentes que viviam na capital, ou também por matérias escritas pelos próprios jornalistas locais, que mesmo vivendo longe da capital, se mantinham informados pela facilidade de comunicação. E o que essa repercussão poderia significar para os jornalistas e os leitores? Os jornalistas podiam produzir discursos que representassem os anseios de seus patrões ou até mesmo de uma elite política local, mas eles também falavam por si. Quando comparavam suas cidades com o Rio de Janeiro e seus prefeitos com Pereira Passos, que foi alçado pela imprensa à posição de herói nacional, queriam expor também suas reivindicações, insatisfações, desejo de mudanças. Os discursos não são neutros, ao contrário, são dotados de intencionalidades, e sua produção se relaciona com as condições que cercam o seu autor, representando os seus sentimentos. Os jornalistas escrevem para o público, mas também escrevem para si mesmos. E suas palavras não são vazias, elas pretendem chegar a algum lugar; chegar nas autoridades para que façam algo, chegar nos leitores para que concordem com suas ideias.

Não se pode pensar no discurso sem pensar na sua relação com o leitor. Afinal, um texto só existe se houver um leitor para lhe dar um significado (CHARTIER, 1994,p. 11). Os discursos sobre o projeto republicano de revitalização da capital surgiram num momento em que o público leitor demandava por mais informações num tempo cada vez mais curto. E ainda que houvesse uma taxa de alfabetização consideravelmente baixa na época, com cerca apenas de 25%, as notícias eram absorvidas, pois a relação do leitor com o discurso vai além da palavra escrita, estando presente em outras formas simbólicas, como as imagens ou a oralidade.

O Rio de Janeiro, privilegiado por sua capitalidade3 e por suas paisagens naturais, era descrito como a metáfora do país. As cidades dotadas de capitalidade, quando reformuladas, assumem uma dimensão de representação de um projeto nacional (NEVES, 1992. p. 5). Esse caso pode ser aplicado ao Rio de Janeiro, pois as mudanças em seu espaço permeariam o imaginário da população brasileira, como uma antecipação
de um futuro de progresso e civilização que alcançaria uma dimensão nacional. O valor simbólico que o Rio de Janeiro possuía enquanto vitrine da nação foi fundamental para os investimentos na cidade, mesmo após o seu esvaziamento político, provocado pela ascensão do federalismo. A capitalidade, desenvolvida ao longo de sua história, a tornou uma referência para as demais regiões do país, justificando os investimentos simbólicos sobre ela. As publicações nos jornais da capital e de outros estados eram parte desse investimento.

Apesar do impacto das mudanças, quem deu a dimensão das reformas foram os discursos sobre ela. A repercussão sobre os investimentos na cidade foi facilitada pelo papel difusor e formador de opinião de uma imprensa que se enquadrava em uma política de poder, dominada por uma minoria. A capital passou por mudanças, mas elas foram setorizadas e não englobaram todo o seu espaço. A elegante Avenida Central (atual Rio Branco), principal símbolo da Grande Reforma Urbana, não representava a cidade de contradições que os jornais, as revistas ilustradas, os álbuns fotográficos e os cartões postais não mostravam. Tais investimentos simbólicos não desciam às particularidades e adotaram como recurso uma propaganda maciça de forte carga emocional que enfatizava um discurso dicotômico que dividia a cidade, marcada pelo antes e o depois das reformas.

Figura 5– Extremidade Sul da Avenida Central, 1910 (FERREZ, Marc. O álbum da Avenida Central. Um documento fotográfico da construção da Avenida Rio Branco)

O Rio de Janeiro que grande parte da imprensa procurava exaltar, era o que havia sido contemplado pelos chamados melhoramentos: o Rio novo, bonito, limpo e moderno em oposição ao Rio antigo, feio, sujo e atrasado. Justificavam uma modernização que expurgaria o aspecto colonial que, segundo seus discursos, vigorava na capital até então, como se a mesma não tivesse passado por quase um século de mudanças durante o período imperial. A capital que era mostrada no Brasil e no exterior era a da Avenida Central e da Avenida Beira-Mar, que partia em direção à Zona Sul, região que cada vez mais crescia no imaginário da cidade como lócus de vida aprazível. Eram áreas privilegiadas que não correspondiam à realidade de toda a cidade. Mas aquilo que não se enquadrava na promoção da capital estava fadado ao esquecimento.

O Rio de Janeiro remodelado não correspondia à cidade em sua totalidade, embora a representasse nas páginas dos jornais e das revistas. E esse mesmo Rio, que representava o país, também não correspondia à realidade de seu vasto território. Apesar de terem sido um recurso para a unificação do regime republicano no coração da população, as reformas foram absorvidas de acordo com as realidades de cada estado e de cada leitor. Não há como generalizar a forma como as notícias eram recebidas, pois cada leitor, e isso inclui aqueles que nem sequer pegaram num jornal, as recebiam e assimilavam de acordo com as suas particularidades. E assim como a diferença de representatividade e de recursos entre as diversas regiões não possibilitava que elas se tornassem uma cópia da capital, suas peculiaridades lhes conferiam uma cultura que era só sua. Portanto, elas não apenas não podiam como também não precisavam ser uma cópia, por maior que fosse o seu encantamento com as notícias que traziam as mudanças ocorridas no Rio de Janeiro.

O Rio de Janeiro como cartão postal foi uma produção da Primeira República (1889-1930). As intervenções em seu espaço urbano e sua divulgação a nível nacional e internacional não teriam acontecido se a cidade não possuísse uma forte representação cultural, construída ao longo de toda a sua história. Essa construção foi implantada no imaginário nacional de maneira tão profunda, que mesmo após a transferência da capital federal para Brasília em 1960, o Rio não perdeu sua representatividade como a vitrine do país, ainda que tal representação venha se mostrando cada vez mais pulverizada. Os discursos da imprensa no início do século XX, apresentavam o Rio de Janeiro como o ícone da renovação nacional, representante de um novo Brasil. No entanto, além de tal renovação ter sido uma realidade mais próxima do discurso do que da prática, é importante considerar a imensa diversidade regional do país e que nem todas as cidades brasileiras eram como a capital federal.

Ainda que certas capitais estudais estivessem passando por alguns processos de modernização na época, tais processos não eram homogêneos, e o país permanecia em grande parte essencialmente agrário e latifundiário. Por outro lado, isso não diminui a importância dessas regiões na formação da história do Brasil, apesar do destaque ocupado pelo Rio de Janeiro, então capital, sede do governo, local de grandes acontecimentos políticos, e polo de atração de migrantes e imigrantes. É justamente a diversidade regional que reúne tantas culturas, climas e paisagens diferentes, que fez e faz do Brasil o país que hoje conhecemos.


*Suelem Demuner Teixeira é formada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestra em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO , trabalha na equipe de processamento de documentos iconográficos do Arquivo Nacional (como servidora), com especialização em História do Brasil pela Universidade Cândido Mendes – UCAM e curso de extensão em História da Medicina Tropical pela FIOCRUZ / Universidade Nova de Lisboa

(1)Ver Pierre Bourdieu. O Poder Simbólico, 1989

(2)As províncias se tornaram estados após a implantação do federalismo, pela Constituição de 1891, sendo
este episódio relacionado ao advento da República, ocorrido em 15 de novembro de em 1889.

(3)O conceito de capitalidade foi desenvolvido pelo historiador e teórico italiano de arte, Giulio Carlo Argan Uma das principais características da capitalidade é o cosmopolitismo. Uma cidade dotada de capitalidade não precisa necessariamente ser a capital da nação, a exemplo de Nova Iorque e Sidney.

BIBLIOGRAFIA

BARBOSA, Marialva Carlos. História Cultural da Imprensa (1800-1900). Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988.

CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Tradução de Mary del Priore, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994.

NEVES, Margarida de Souza. Brasil! Acertai vossos ponteiros! Museu de Astronomia e Ciências Afins (Org). MAST/CNPq. Rio de Janeiro,1992.

OLIVEIRA, Cláudia de. A iconografia do moderno: a representação da vida urbana. In OLIVEIRA, Cláudia (org.). O moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

VERGARA, Moema de Rezende. A divulgação da Botânica no século XIX: o caso do jornal O Vulgarizador. In: KNAUSS, Paulo et al., organizadores. Revistas Ilustradas: modos de ler e ver no Segundo Reinado. Rio de Janeiro: MAUAD X: FAPERJ, 2011.

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