Bruno Capilé


Para aqueles que nasceram na segunda metade do século XX em diante, o Brasil é um fato. Os estados e regiões que o compõem, a ideia de uma nação politicamente unificada e a existência de uma cultura e sentimento nacional são aspectos dados como naturais e presentes desde tempos imemoriais. A princípio, a ideia de um território geograficamente delimitado e compartilhado por uma mesma população é a característica principal elencada quando pensamos na nação. No entanto,será este território tão natural quanto se pensa? O que os contornos territoriais do Brasil podem noscontar sobre sua história?

A demarcação de fronteiras externas é um processo longo que remonta aos tempos do domínio colonial português e suas disputas territoriais com a Espanha, passando pelos governos imperiais de D. Pedro I e D. Pedro II. Nos primeiros anos da República essa questão ainda possuía um grande espaço entre os interesses e preocupações do governo federal. Neste cenário, tratava-se de assegurar a unidade do território sob a marca do poder republicano para garantira consolidação desse modelo político e dos grupos envolvidos nele.

Em seu artigo Ciência,  fronteiras  e  nação:  comissões brasileiras  na  demarcação dos  limites  territoriais  entre  Brasil  e  Bolívia,  1895-1901, Moema Vergara nos dá uma amostra deste processo ao tratar da disputa travada entre Bolívia e Brasil na atual região do Acre. É somente a partir da declaração de Independência em 1822 que podemos associar esses esforços de demarcação ao projeto de construção da nação. A delimitação territorial é parte essencial deste projeto, pois é a partir da unidade do território que podemos projetar uma unidade política, cultural e linguística, por exemplo.

Fig 1: Mapa das cabeceiras do rio Jaquirana, feito por Luiz Cruls e Adolfo Ballivian (1901).

Logo, tornar a nação algo real implica em construí-la também como realidade territorial. Mas como fazer isso? É aqui que surge um elemento pouco mencionado e para muitos surpreendente: a ciência. É a partir do trabalho de expedições científicas que tais demandas podem ser viabilizadas nas regiões onde serão demarcadas as fronteiras. Essas expedições mobilizam uma série de técnicas e conhecimentos científicos em prol da construção da nação, calculando, medindo e coletando informações sobre determinada região para que os traçados fronteiriços possam ser discutidos pelos membros dos governos.

Moema Vergara analisa o trabalho das três expedições brasileiras e suas respectivas comissões designadas para explorar a região conhecida atualmente como o Acre, no intuito de encontrar a nascente do rio Javari que seria utilizada como ponto de demarcação para as fronteiras com a Bolívia e Peru. A autora ressalta que as disputas políticas são parte fundamental desse processo, visto que está em jogo os interesses de cada país envolvido e, sobretudo, sua soberania. Assim, entre 1895 e 1901 Gregório Thaumaturgo de Azevedo, Augusto Cunha Gomes e Luiz Cruls lideraram trabalhos distintos na regiãopara, além de mapear a mencionada nascente, coletar o maior número de informações possível sobre a fauna, flora, clima, geologia e vida social daquele espaço.

A astronomia ocupa um lugar central no trabalho das expedições, utilizando instrumentos científicos como o teodolito para obtenção de coordenadas geográficas de latitude e longitude. Vergara destaca que a produção de conhecimento não era algo secundário, mas sim parte obrigatória das expedições, já que a partir delas se tornava possível conhecer os espaços afastados do litoral sul, eixo da política e economia do país. Denominados “sertões”, esses espaços passam a habitar o imaginário social dos moradores da capital carioca a partir das informações recolhidas pelos membros das expedições e transformadas em relatórios muitas vezes publicados pela imprensa.

Assim, espécimes de plantas recolhidas, anotações sobre populações indígenas, descrições de rios, tipos de solo e clima contribuem para formar uma imagem daquela parte da região amazônica além de servir para os tratados de fronteiras.O conhecimento adquirido pela ciência acaba por exercer uma dupla função, condicionando os debates travados entre o governo brasileiro e boliviano e gerando informações sobre espaços até então pouco conhecidos.

Diante disso, entendera nação como um projeto, uma construção pensada por esferas do governo e da sociedade civil nos permite compreender como esse processo é feito através de escolhas e disputas, algo que pouco aparece na imagem do Brasil cordial e pacífico que corre no discurso cotidiano.Olhar para a história do nosso território e de suas fronteiras implica ainda reconhecer que o espaço que habitamos não é fruto de nenhuma naturalidade ou providência, mas da ação humana e conflituosa.

Em seu texto, Moema Vergara apresenta ainda uma relação pouco pensada até mesmo no âmbito acadêmico: a relação entre ciência, nação e território. Colocada em uma posição de neutralidade, a ciência não costuma ser associada diretamente a questões políticas, aparecendo mais como uma ocupação exclusiva de certos setores sociais. Porém, quase sempre assume uma atuação política e em nossa história seu papel ultrapassa os laboratórios, livros e universidades para adquirir uma importância central nos esforços de consolidação daquilo que hoje chamamos e identificamos como Brasil.

Constantemente apontada como afastada do cotidiano das pessoas, a ciência está mais presente em nossas vidas do que imaginamos.Poder pensar a nação a partir de um território geograficamente delimitado é apenas uma de suas tantas contribuições. Logo, a divulgação da ciência passa também por reabilitar sua presença nos vários momentos em que atua como elemento chave da história do país. Reconhecer suas contribuições no passado é, sobretudo, reconhecer o papel essencial que ainda exerce em nossa sociedade.

Andressa é graduanda em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Para saber mais:

VERGARA, de Rezende Moema. Ciência,  fronteiras  e  nação:  comissões  brasileiras  na  demarcação dos  limites  territoriais  entre  Brasil  e  Bolívia,  1895-1901. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 5, n. 2, p. 345-361, maio-ago. 2010

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