Anna M. Canavarro Benite


Existem diferentes maneiras de se fazer leituras de realidade, o conhecimento científico é uma delas, e não há como apontar qual recorte de realidade teria maior importância, mas a ciência segue sendo uma perspectiva hegemônica. Essa perspectiva tende a produzir símbolos característicos da sua linguagem que, por si só, interditam o acesso a essa linguagem. A ciência moderna e recente, da maneira como nós a conhecemos, interdita produções de seus predecessores e estabelece uma estrutura calcada na centralidade da produção de conhecimento que hierarquiza o conhecimento e imprime uma relação racista no próprio estabelecimento do corpus da ciência. Os corpus de conhecimentos produzem símbolos específicos, com significações diferentes para cada grupo social. Destaco a diversidade de significações construídas pelo conhecimento científico, conhecimento tradicional e conhecimento religioso.

Existem basicamente dois mecanismos de difusão dos traços de produção cultural. Um deles ocorre de maneira espontânea nas comunidades tradicionais – que hoje são 28 segmentos diferentes reconhecidas por lei no nosso país; o outro é o que associa mecanismos da nossa sobrevivência (modo de produção) à produção de conhecimento científico. Toda produção cultural, seja por mecanismo de difusão espontânea, seja por competição, é marcada por interdições e regras.

A marca do conhecimento científico é ser um conhecimento simbólico por natureza, como todas as matrizes de pensamento, mas esta é socialmente negociável. Não por acaso, esse conhecimento, produzido e ensinado dentro das instituições escolares no nosso país, é um conhecimento branco, eurocêntrico, hegemônico, produzido principalmente por homens. E, ainda, é um conhecimento entendido como universal e verdadeiro: “a” verdade absoluta.

Não por acaso, essa simbologia historicamente valorizada está associada a um discurso de demérito das demais simbologias e epistemologias. Por isso, matrizes culturais não hegemônicas sequer chegam a compor os currículos das nossas instituições escolares. Ademais, para justificar a visão negativa, a ordem do demérito é atrelada à barbárie que se instauraria nas outras possíveis matrizes de produção de conhecimento.

A ciência, como mecanismo de produção cultural, cria regras e interdições. Vocês sabiam que essa pirâmide alimentar mudou? O símbolo de nossa nutrição é a garantia do funcionamento das nossas reações metabólicas. Agora, na base da pirâmide, vem hidratação e exercício físico. O que a gente aprendeu sobre a quantidade e a composição de nutrientes agora só vale se eu estiver bem em termos de hidratação e exercício físico. Essa mesma ciência que regula meu funcionamento metabólico, interdita os corpos negros. Quando a gente, no quinto ou sexto ano, estuda a evolução da espécie, aprende nos modelos da biologia que macaquinhos viram homenzinhos, e não homens quaisquer, mas homens brancos. As mulheres sequer foram cogitadas na escala de evolução. Apesar do elogiado programa nacional do livro didático, isso continua sendo reproduzido como modelo hegemônico de ciência.

Esse modelo que toma o gênero masculino como universal é equivocadamente reproduzido nas obras didáticas, apesar de os estudos de datação da espécie humana – estudos mitocondriais, que são marcadores femininos -, indicarem Lucy, uma mulher africana exemplar do Australopithecus Afarensis, como a referência do ser humano mais antigo da nossa história. O esqueleto de Lucy foi recriado e está exposto em museus2. Hoje, essa ciência que é produzida e ensinada a partir desse lugar social eurocentrado e masculino de produção epistemológica é responsável por nos colocar, no ranqueamento, como décimo terceiro país produtor de artigos científicos no mundo. Mas, quando a gente observa o que isso significa, e como isso se relaciona com o Índice de Desenvolvimento Humano no Brasil, há um imenso hiato: os índices de qualidade de vida nos posicionam na septuagésima nona posição.

Temos um enorme potencial de produção de conhecimento, mas não chegamos ao produto final. Além disso, esse produto não dialoga, de fato, com quem somos. A produção científica que acontece nas universidades e também os currículos dessas instituições são, majoritariamente, currículos brancos, que produzem pesquisas preocupadas com um suposto sujeito universal. Estou falando de um lugar de privilégio, que autoriza aquilo a que a gente assiste, neste momento, no nosso país: uma equipe de homens brancos, cometendo desmandos diariamente, vilipendiando os direitos da população brasileira. Mas, se a gente coloca aqui as lentes de óculos que descortinam desigualdades, a gente observa que a expectativa de vida ou longevidade, segundo dados do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, reduz-se de acordo com condições étnico-raciais, de classe e de gênero. Cabe observar que a população negra brasileira ainda dá cor aos empregos subalternos, aos presídios, às moradias da periferia e luta para sobreviver todos os dias contra o braço armado do Estado.

A lógica de produção da ciência, no nosso país, é baseada na meritocracia, o mesmo argumento que tenta desqualificar as nossas presenças negras em diversos espaços, como a Academia. Essa mesma lógica que tenta desqualificar as nossas presenças neste espaço não se sustenta mais no argumento político de produtividade. Essa lógica está baseada na competência, na temporança e na competitividade. Mas é a lógica de uma ciência que não dialoga com quem nós somos. A Academia segue propagando alguns mitos raciológicos e apagando a história do povo africano e da diáspora. Cito um excerto da entrevista de James Watson, prêmio Nobel de Medicina, ao The Sunday Times, em outubro de 2007: “Todas as nossas políticas sociais são baseadas no fato de que a inteligência dos negros é igual à nossa, apesar de todos os testes dizerem que não”. Isso foi veiculado em discursos acadêmicos dos séculos XIX e XX.

Não existe outra maneira de nos situarmos, a não ser nos comprometermos com quem somos, com as nossas origens. Sou uma negra cientista. É fato: nossos corpos chegam primeiro e o estigma racial insiste em nos capturar. A realidade precisa mudar, porque uma sociedade menos racista é uma sociedade com qualidade de vida para todo mundo.

Fonte: http://agencia.fapesp.br/mais-africano-do-que-nunca/7465/The effect of ancient population bottlenecks on human phenotypic variation Andrea Manica, Bill Amos, François Balloux and Tsunehiko HaniharaNature. 2007 July 19; 448(7151): 346–348. doi:10.1038/nature05951.

Existe outra maneira de produzir ciência? Sim, existe. Uma dessas maneiras é aprender com nossos ancestrais e com o que a resistência epistemológica no nosso país têm feito: uma ciência que se coloque pertencente à natureza, e não, exploradora da natureza. A gente tem muito a aprender com os povos que não separaram seus mitos de seu conhecimento científico. Existe uma gama de pesquisadores que lutam contra a invisibilização do passado do povo da diáspora africana no campo da ciência e tecnologia. Eu trouxe alguns exemplos: Frantz Fanon, Ivan Van Sertima, Ney Lopes, Sueli Carneiro e Abdias Nascimento, homenageado aqui hoje. Sua viúva toca o Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros – IPEAFRO, reunindo toda a história do Teatro Experimental do Negro, uma das primeiras experiências de alfabetização de adultos no nosso país. Antes de Paulo Freire, Abdias Nascimento já estava fazendo alfabetização de negros no país. E Henrique Cunha. Existe uma gama de pesquisadores trabalhando nesse sentido.

Há muitos anos reivindicamos um currículo que reconhecesse espaços de produção de outras matrizes de produção. No nosso país, faz sentido falar na matriz de produção da diáspora, porque somos o segundo país em população negra no mundo. Uma capa da Nature de 2007 abordava um estudo de marcadores de radioisótopos para determinar a composição dos seres humanos mais antigos da Terra. Esse estudo foi conduzido por pesquisadores da Inglaterra e do Japão e chegou à seguinte conclusão, com técnicas avançadas de radioisotopia: a composição mais próxima que tinham os seres humanos mais antigos dos cinco continentes era a composição do mais antigo ser da África. Nossa origem, portanto, é africana. Cheikh Anta Diop já falava sobre isso em 1979, quando produziu um mapa traçando os fluxos migratórios a partir de artefatos técnicos encontrados nos cinco continentes.

Quais são as semelhanças entre o muro de Zimbábue, os templos incas ameríndios e as pirâmides? Que conhecimento está atrelado à manipulação das coordenadas retangulares, descritas num papiro egípcio, que hoje está num museu na Europa? Se a gente precisasse de mais um motivo para reivindicar um lugar de produção de ciência, valem as Cavernas de Blombos, descobertas em 2009 na África do Sul, reveladas para a humanidade em 2012. O que foi achado nelas? Artefatos de um povo que manipulava operações unitárias. Um povo que não só estocava alimento, mas também os armazenava e fazia misturas, transformava alimentos. Essas cavernas são datadas de 70 a 100 mil anos atrás, e a pré-história humana é contada a partir da França, com achados de 17 a 18 mil anos atrás. Ou seja, Blombos reivindica a recontagem da nossa pré-história, conforme descoberta de 2009. Passaram-se dez anos, mas a gente ainda não viu isso inserido nos livros didáticos. O osso de Ishango3 é a primeira calculadora da história da humanidade: são três colunas empalhadas no perônio de babuíno; é a primeira vez que se tem notícia dos números primos. O artefato foi também creditado como ferramenta para multiplicação, e como calendário; a marcação do calendário lunar, aliás, era um modo de as mulheres marcarem os ciclos femininos.

Esta é a balança que ficou conhecida na história como “balança de Lavoisier”. A partir daí, muda a maneira como a química relaciona a proporção entre elementos químicos. Essa balança já tinha sido descrita antes, no mito religioso de Osiris, no Egito negro. Trata-se de um deus que se doa em favor do seu povo e ressuscita no terceiro dia, parecido com outra história que conhecemos…


Este texto foi proferido na Jornada de Seminários “Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: gênero, neocolonialismo e espaço sideral”, realizada de agosto a dezembro de 2019, sob a coordenação de Helena Nader e Paulo Herkenhoff, titulares da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência. A publicação sairá pela Editora do Instituto de Estudos Avançados da USP.

*Anna M. Canavarro Benite é Doutora e Mestre em Ciências e Licenciada em Química (UFR J/ 2005). Professora Associada e Coordenadora do PIBID QUÍMICA da Universidade Federal de Goiás. Coordenadora do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão- LPEQI  da UFG (2006) onde instituiu em 2009 o Coletivo CIATA- Grupo de Estudos sobre a Descolonização do Currículo de Ciências

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